Ouro Preto

Ouro Preto é presépio
Maquete
Onde passa um trem fantasma

Por baixo

Das casas de fina pedra

Onde um sino transparente
Badala
Movido por um certo padre morto

Ouro Preto parece que vai
Desmanchar
Sob cada pôr do sol

Enquanto as sombras gesticulam animadas
Nos vãos das escadarias

É bom ver o povo embarcar nos barcos de nuvens
Que de manhã vêm devagarinho das montanhas

Para aportar em Ouro Preto

Onde há ainda lagartos
Lambendo a água dos beirais das casas nababescas

E as mulheres lavam roupa
Rindo do rio que corre manso como o dia

E falando da beleza que deve ser o mar

É bom olhar para as vielas
E ladeiras
De Ouro Preto

Por onde você sumiu
Em sua liteira de rainha

Prometendo voltar

Em alguma noite insana

Este poema faz parte do livro Poemetos, que pode ser lido na íntegra, ao fazer o download aqui.

 

Lilibeth

Como uma falsa inglesa perdida numa farra tropical
Caindo de bêbada numa rua de paralelepípedos desta cidade tão pequena
Lá vai Lilibeth
 
Sob os rojões da quermesse
 
Que não abafam a ladainha do piano mal tocado
Pelo careca rico seminu
A gargalhar no quarto alugado a preço vil
 
Lá vai Lilibeth
 
A pobre Lilibeth
 
Ela sabe do arco-íris que nasce sob a pálpebra do macaco
- Poderia incinerar a Barca do Inferno
 
Mas também sabe que as Pragas do Egito estão escorrendo como pus
Do braço arrancado do dia
 
Pobre Lilibeth
Como uma falsa inglesa perdida numa farra tropical
Lá vai ela
 
Caindo de bêbada numa rua de paralelepípedos desta cidade tão pequena
 
Deixemos Lilibeth morrer do seu amor
Deixemo-la sofrer
 
Nada temos com a dor de Lilibeth
 
A não ser que desejemos o amor de Lilibeth
A não ser que desejemos sofrer com Lilibeth
 
A que sabe das Pragas do Egito
 
A que sabe da Barca do Inferno
 
- Sim. Amanhece devagar
Tão devagar que as luzes dos postes já bocejam de sono e de tédio
 
E os macacos riem - como se riem!
Nesta noite abominável
 
Este poema faz parte do livro Os campos de caça do senhor, que pode ser lido na íntegra, ao fazer o download aqui.

Timbuktu

A velha Timbuktu

Vai recolhendo-se

Para dormir

 

Sob a chuva 

Das incansáveis areias

Do Saara

 

A solene Timbuktu

 

A que perdeu os refrescantes oásis ao norte

As insondáveis florestas ao sul

 

E o magnífico céu sempre cheio de estrelas

 

O sal e o ouro

Os escravos

 

Viraram ossos e poeira

 

Misturaram-se à areia

Das tempestades

 

A pobre Timbuktu

Prepara-se para dormir

 

Com sua biblioteca de 700 mil livros

Que tão poucos sabem ler

 

A Timbuktu arruinada

Já está quase para dormir

 

Com seus retratos desbotados de Mansa Musa

O rei que comia ouro

E regurgitava sal

 

Sobre os pés dos escravos

 

A pobre Timbuktu

Terceira Roma na África

Glória feita de pedra e de barro

Já vai adormecer

 

Sob o olhar

Dos machados manchados de sangue

Com suas grandes portas

 

Abrindo-se para o Nada

 

Para a obstinada areia

Do Saara

A zebra na neve

 O caminhão na estrada nevada

Carrega a zebra da África


As listras brancas da neve

Ressaltam-se no asfalto preto

 

Se retiradas as listras pretas

Da zebra

 

Ela seria um cavalo branco

 

E fugiria na neve

Como uma ave no vento

Cumplicidade

Os nossos pares de chinelos

Lavados

Perfilados do lado da banheira


O shampoo que compartilhamos

Até o frasco acabar


As nossas duas toalhas velhas

Separadas


Mas que nunca sabemos

Qual é a de quem


O suave farfalhar dos seus cabelos

No meu rosto

Quando você os seca

No vento fresco da janela


Viver


É viver junto


A mulher na porta

    Decidiu que não iria abrir a porta. E deixou a ex-mulher bater e gritar, bater e gritar, enquanto procurava algum programa de esportes na TV. Os gritos ecoavam agudos e esganiçados e, não sabia por que, fazia-o pensar nos gritos dos fantasmas – no caso, um fantasma furioso e desesperado, lançando alguma maldição contra quem se recusou a puxá-lo do limbo. Não precisou esperar muito: minutos depois, do lado de fora só vinha o silêncio. Com um suspiro de alívio, abaixou o som da TV até o inaudível, levantou-se e foi colar o ouvido na porta: nada. Apenas o barulho distante de utensílios nos apartamentos vizinhos, uma tosse masculina, alguém ouvindo bossa nova, provavelmente a moça do 38, aquela de cara triste. Ia abrir a porta para se certificar se ela tinha ido mesmo embora quando sentiu que seus pés estavam molhados. Olhou para os pés, e de fato. Oh, não. A desgraçada não só continuava do outro lado como arranjara um jeito de jogar água para dentro do apartamento, uma água que se infiltrava em suaves filetes por debaixo da porta.
    Ficou observando, aflito, a água escorrer por debaixo dos seus pés e avançar pelo carpete, que por azar mandara lavar a seco noutro dia. Pensou em gritar para ela, mandá-la parar com aquela bobagem, mas isto seria admitir a derrota: jurara nunca mais vê-la, fazer de conta que ela jamais existira, não discutir nunca mais sobre com quem ficaria o apartamento. Então era preciso continuar o jogo do silêncio. Correu para a área de serviço e pegou todos os panos de chão que conseguiu juntar. Com presteza de faxineira experiente, vedou o vão da porta e espalhou os panos da melhor forma que pôde pela área molhada. Depois eu seco melhor. Vamos ver quem vencerá. 
    Voltou para o sofá com um sorriso triunfante pendurado nos lábios, e aumentou o volume da TV. Continuou a procurar algum jogo, mas só achou um de basquete – esporte que detestava, mas pelas circunstâncias estava mais do que bom. O jogo era chato de doer, uns negros americanos enormes fazendo uma cesta depois da outra e saindo para comemorar com expressão arrogante. Era um time de amarelo contra outro time de azul. Vou torcer pelos amarelos. Espreguiçou-se e relaxou no sofá. Mas mal começara a se concentrar quando sentiu outra vez os pés encharcados. Horrorizado, percebeu que estava com os pés dentro de uma fina lâmina d’água, que todo o chão da sala estava coberto por uma fina lâmina d’água. Aquela louca continua lá fora, gemeu. Vedar a porta não adiantara nada, os panos não serviram para nada. 
    Foi até a porta disposto a gritar com ela, a bater nela, se fosse preciso. Com cara de nojo, retirou com dois dedos os panos que vedavam a porta e abriu-a de uma só vez e com violência: mas viu, surpreso, que não tinha ninguém lá fora. Ela se cansara e fora embora. Menos mal. Esperou mais um momento para atestar se ela tinha realmente partido. Tudo indicava que sim. Sacudiu os ombros com indiferença e entrou, dando duas voltas na chave e colocando a corrente. Ia dar um trabalho danado secar o carpete.   
    Mas percebeu depressa que era melhor nem pensar nisso. Era dar o fora enquanto fosse possível. A umidade espalhava-se pelo apartamento de maneira ominosa, era possível ver que alguns cogumelos atravessavam o carpete e já estavam com as suas pequenas copas acima da lâmina d’água, e que do teto e das paredes cresciam estalactites ao redor do bolor. E os gritos dela recomeçavam, vindos agora não do lado de fora, mas de dentro dos armários, das paredes, dos cogumelos, das inacreditáveis samambaias que surgiam por toda parte ele não sabia como, era uma algaravia ensurdecedora, sem falar do desenho da cara dela formando-se e desmanchando-se na lâmina d’água, uma floresta de maldições e de pranto e de fantasmas da qual era melhor fugir antes que se perdesse nela para sempre, ok, ok, você venceu, pode ficar com o apê, estou dando o fora.
 
Este conto é parte de Arboredo. Você pode baixar o livro inteiro em PDF. Clique aqui

Artigo sobre O saxofone de Trèves

Alberto Mawakdiye, jornalista e escritor - colaborador do site Usinagem-Brasil - acaba de lançar seu terceiro livro: “O saxofone de Trèves”. O livro tem como fio condutor um misterioso saxofone, fabricado no século XIX com ligas metálicas incomuns, que aparece em vários lugares e em alguns momentos históricos, entremeados com a própria história do instrumento e de seu criador, Adolphe Sax.

Você sabia, por exemplo, que o saxofone foi proibido pelos nazistas? Pois, uma das estórias que compõem o livro coloca um saxofone - quem sabe o fabricado por Trèves - justamente nesse triste período da humanidade, com soldados nazistas caçando aqueles que se aventuravam a tocar o instrumento inventado por um judeu belga e que, além disso, havia caído no gosto dos negros norte-americanos e se tornará um dos símbolos do jazz.

Em outra das estórias, carregado por um comerciante e seu ajudante, o sax sobe as escadarias da recém-construída Torre Eiffel para ser apresentado a ninguém menos que o próprio Gustave Eiffel. O tal saxofone também teria aparecido num jazz bar no centro de São Paulo, num momento em que a proprietária enfrenta dificuldades para substituir um saxofonista que, de última hora, cancelou sua participação numa jam session, com a qual ela contava dar início à recuperação do seu endividado estabelecimento. Em outros momentos, o sax aparece na Argentina, na Líbia, na Romênia, no Velho Oeste e até num evento de divulgação de um fabricante de ferramentas.

Saxofonista amador, Mawakdiye transita por todas essas histórias com um estilo todo particular, em que combina seu talento literário com recursos jornalísticos e historiográficos, criando narrativas envolventes.

Os apreciadores de música, e particularmente de saxofone, vão saborear as estórias de “O saxofone de Trèves”, assim como aqueles que curtem a boa literatura.

“O saxofone de Trèves” está à venda no site da Editora Viseu, nas versões impressa e digital. Veja aqui.

 Resenha publicada no site Usinagem-Brasil.

O trem das seis e meia

(Um apartamento em São Paulo, decorado frugalmente. Léo e Catarina estão sentados no chão da sala, em posição de lótus, bem perto um do outro. Ele protege uma das orelhas com a mão em concha, para tentar ouvir melhor alguma coisa. O apartamento é pequeno e os sons entram por todos os lados, dificultando obviamente a localização do que ele quer realmente escutar.)


Catarina (sussurrante e já um pouco entediada)
E então? Ele está vindo?

 

Léo (tapando suavemente a boca da namorada e com um fiapo de voz)
Shh... ainda não. Mas deve passar a qualquer momento.

 Catarina (sorrindo e afastando a mão dele da sua boca com bem menos suavidade. Mas continuando a falar no modo sussurrante)

Você tem mesmo certeza?

 Léo
Absoluta certeza.

 

Catarina (depois de fazer um grande esforço para ouvir)                           Não estou escutando nada.

 

Léo
Talvez ainda não esteja na hora. Talvez o seu relógio esteja adiantado.

 

Catarina
Meu relógio nunca está errado.

 

Léo
Bom, o horário era mais ou menos esse. Por volta das seis e meia.

 

Catarina
Você falou que ele passava às seis e meia em ponto.

 

Léo
Eu posso ter me enganado. Faz tanto tempo.

 

Catarina (bufando baixinho, mas sem tirar o sorriso do rosto; mas a voz volta ao tom normal de conversação)
Olha, Léo. Tudo bem. Vamos esquecer essa história. Foi uma ilusão de ótica que você teve. Quer dizer, uma ilusão auditiva, já que esse trem é invisível. Não existe trem nenhum.

 

Léo (também voltando a falar em tom normal)
Tenho certeza que existe. É incrível que você nunca o tenha escutado.

 

Catarina
Fico pouco aqui nesse horário, Léo. A essa hora estou trabalhando, você sabe. Tive de dar uma desculpa para sair do trabalho mais cedo. Mas a gente sempre está aqui nesse horário nos fins de semana. O trem nunca apareceu.

 

Léo
Ele não vem nos fins de semana. Não sei por que, mas só aparece nos dias úteis.

 Catarina (sem conseguir evitar um risinho irônico)

“Além de tudo é um trem trabalhador”.

Léo (fazendo de conta que não escutou o gracejo)
A tua colega de apartamento também nunca escutou?

 

Catarina
A Sandra? Nunca me disse nada.

 

Léo
É incrível. O barulho que esse trem faz é alto. É impossível não escutá-lo.

 

Catarina
No entanto é assim. Você sabe como ela gosta de música. Talvez escute música às seis e meia. (pensa um pouco) Ou cozinhe. É isso. A Sandra cozinha às seis e meia. Mexe com panelas. (senta-se no sofá, acende um cigarro) Relaxe. Não quer beber nada? Comprei cerveja ontem.

Léo (vai sentar-se no sofá ao lado dela. Cruza as pernas de novo na posição de lótus, sem tirar os sapatos)
Obrigado. Não quero nada.

Catarina (olhando com desaprovação os sapatos do namorado em cima do sofá)

Morar em um apartamento onde passa um trem dentro da sala. É estranho.

Léo (também acendendo um cigarro)
O que há de estranho nisso?

 

Catarina (suspira)
Nada.

  

Léo (desfaz a posição de lótus e a abraça)

Vem cá. Você acha que eu estou ficando maluco, não é?

 

Catarina (deixa-se enlaçar com doçura)
Um pouquinho. (pousa o cigarro no cinzeiro e retribuiu o abraço) Mas eu gosto. É diferente.

 

Léo
Esse trem é muito importante para mim.

 

(Catarina ri do comentário. Mas algo a fez afastar-se dele com expressão intrigada. Retoma o cigarro do cinzeiro)

 

Catarina (com expressão intrigada)

É mesmo. Já percebi. Mas porque tanto assim?

Léo (pára para pensar. Assume a cara de bobo de quem sabe, mas não consegue explicar.

Na verdade, não sei.

Catarina (soltando uma longa baforada e esmagando o cigarro no cinzeiro)

Bem. É a sua vida.

 

Léo vai até a janela. Fica olhando para fora. A cara de bobo dá lugar a uma cara sonhadora

 

Léo
Quando eu morava aqui era tão feliz. Era uma república de estudantes. Acontecia cada coisa.

 

Catarina (recostando-se de olhos fechados no sofá)

Eu sei. Você me contou.

 

Léo
Acho que foram os melhores momentos da minha vida.

 

Catarina
Eu também tenho passado bons momentos aqui.

 

Léo (levantando-se alarmado)
Espere, Catarina! Esse barulho... escuta!

 

Catarina (também se levanta e se põe a escutar. É um engano. Volta a sentar-se, decepcionada)
Não, não é. É um caminhão.

 

Léo (começa a caminhar nervoso pela sala)
Eu sabia. Eu sabia. Esse trem passava para as pessoas ouvirem. Você não escutou. A sua amiga não escutou. Ninguém escutou. Ele passou despercebido por anos a fio e desistiu. Mau Deus, algo tão especial e vocês não escutaram! Como vocês são relapsas!

 

Catarina (irritada)
Ei, espere aí! Não precisa partir para o insulto! A gente nem sabe se esse trem existe mesmo! Como você pode dizer que a culpa é nossa?

 

Léo
Eu e a Cármen o escutávamos perfeitamente.

 

Catarina
Cármen... Cármen... é sempre essa Cármen! Porque você não volta com essa tal de Cármen e vai ouvir o trenzinho na casa dela, hein?

Léo (aproxima-se dela e a abraçando, carinhoso)
Ei, não precisa ficar nervosa... Não é nenhuma crise de nostalgia, não. Além do mais, o trem passa aqui, sei lá se passa na casa dela. Aliás, me falaram que ela morreu. Que pulou da janela uns dois anos atrás.

Catarina
Eu estou me sentindo ridícula. Esperando passar um trem dentro da minha sala. Que é só um barulho. Nunca pensou que pode ser um reflexo dos trens da Estação da Luz?

 

Léo
A estação é muito longe daqui.

 

Catarina
Pode ser o barulho das pessoas. Alguém passando o aspirador de pó.

 

Léo
Não. Eu me lembro como se fosse hoje. A gente estava na sala e o trem primeiro buzinava. Depois era o barulho da composição passando a todo vapor.

 

Catarina (pedindo para ele ficar quieto)
Escute.

 

Léo (depois de forçar os ouvidos)
Não. Não é ele.

 

Catarina
É incrível como esse apartamento é barulhento. Nunca tinha percebido.

 

Léo
Sempre achei muito silencioso.

 

Catarina
Tentando ouvir o trem que a gente percebe.

 

Léo
Vocês o espantaram.

 

Catarina
Ele pode ter mudado o itinerário.

 

Léo
Difícil.

 

Catarina
Afinal, porque você quer tanto escutar esse trem? Que diferença faz?

 

Léo
Você não entende. Não posso abandoná-lo.

 

Catarina
Você devia chamar a TV. Iria dar um excelente quadro no Fantástico.

 

Léo
Ora, Catarina.

 

Catarina (enlaçando-o, sensual)
Léo.

 

Léo
Diga.

 

Catarina
Eu estou pensando numa coisa.

 

Léo
E o que é?

 

Catarina (agarra-se a ele com força)
Isso. Não é bom?

 

Léo (desembaraça-se dela)
Temos a noite inteira à nossa frente. Vamos esperar o trem passar. Fique boazinha por enquanto.

 

Catarina
Já são mais de seis e meia, Léo. Ele não vai passar mais.

 

Léo
Não é verdade.

 

Catarina
O que você e a Cármen faziam quando o trem passava?

 

Léo
Nada, ora... a gente o escutava.

 

Catarina
Eu não perguntei isso.

 

Léo
A gente... a gente viajava com ele.

 

Catarina
Devia ser interessante.

 

Léo
E era. A Cármen falava coisas incríveis.

 

Catarina
O que, por exemplo?

 

Léo
Que podia ser o trem do Vladimir Ilich. Você é muito nova, não vai saber quem é. É o Lênin. Que fez a Revolução Russa. Podia ser o trem do Lênin chegando em São Petersburgo.

 

Catarina
Ah.

 

Léo
Que podia ser algum trem fantasma. Amaldiçoado. Que passava só para que alguém o escutasse. Escutasse os gritos dos passageiros, quero dizer. E os salvasse.

 

Catarina (fazendo uma careta)
Que tétrico!

 

Leo

Tentávamos também decifrar o itinerário. Nós perguntávamos: será que ele passava só aqui? Achávamos difícil. Mas não conseguíamos imaginar quais seriam esses outros lugares.

Catarina (rindo)

Deus do céu! Que bando de loucos.

Léo (com voz sonhadora e como se ela não estivesse ao lado dele)
Eu passei todos esses anos pensando no trem. Foi uma sorte ter encontrado você, que mora exatamente aqui, onde eu morei e onde o trem passava.

 

Catarina (inquieta)
Léo.

 

Léo
Oi.

 

Catarina (com uma voz pastosa e melíflua)
Você não me conheceu só por causa do trem, não é?

 

Léo (surpreso)
Que idéia esquisita é essa, Catarina?

 

Catarina (um pouco arrependida pela ênfase colocada na pergunta)
Por um momento imaginei que... você sabe...

 

Léo (irritado)
Que absurdo!

Léo bate nas roupas como se para limpá-las. Vai novamente até a janela. Permanece por um instante outra vez indiferente à existência de Catarina. A atitude distante e o brilho vazio e melancólico do olhar do rapaz fazem Catarina explodir. Vai até o rapaz e o faz girar para diante de si.

Catarina (como numa revelação)
Não... é isso mesmo... é a pura verdade... A maneira como você me conheceu... você veio pegar uns papéis no guarda-roupa... só que não tinha papel nenhum... aquela conversa fiada... como fui tonta! Você poderia estar namorando a Sandra, se fosse ela a atendê-lo! Você estava mesmo era interessado no trem! Nesse trem pirado em que você e essa tal de Cármen viajavam!.

 

Léo
Catarina, espere! Você acha mesmo que eu seria capaz de namorar você só para ouvir o trem? Isso não faz nenhum sentido!

 

Catarina (joga-se no sofá e começa a gargalhar, transtornada)
Meu Deus, cada maluco que me aparece! Você quer reproduzir a vida que levou com a Cármen! Quer me transformar numa Cármen! Meu Deus, que ridículo!

Léo (sentando-se ao lado dela, com uma expressão séria e preocupada)

Catarina. Espera. Você acha mesmo que eu seria capaz de namorar você só para ouvir o trem? Para me lembrar da Cármen? Isso seria totalmente ridículo, como você mesmo disse!

Catarina (tentando segurar o riso, mas transformando-o num soluço)

Meu Deus, cada maluco que me aparece! Como não percebi que essa história do trem era apenas um pretexto? Você queria mesmo era lembrar a vida que levou com a Cármen! Pisar no apartamento onde passou momentos tão maravilhosos ouvindo o trenzinho apitar do lado da tal de Cármen!

Léo
Catarina, você está sendo injusta!

 

A moça vai até a porta e a abre com estardalhaço.

 

Catarina

Sai daqui, Léo. Não quero mais olhar para a sua cara! Pelo menos hoje!

Léo permanece sentado no sofá sem se mexer. Está vermelho de constrangimento.

Catarina (altiva)
Vamos! O que está esperando?

Léo dá um suspiro conformado. Pega o casaco e joga-o no ombro. Vai de cabeça baixa até a porta. Vira-se para se despedir. Mas, do nada, volta para o meio da sala, com o ar de quem encontrou alguma coisa.

Léo (com um gesto decidido para Catarina)
Shh.

 

Catarina
O que foi agora?

 

Léo (muito excitado)
Escuta! Está escutando?

 

Catarina (prestando atenção e arregalando os olhos)
Estou! É mesmo um trem! É o trem da Carmen, Léo!

 

Ouve-se uma buzina e o barulho de uma composição, e depois a de um trem parando em uma estação. O som da fornalha ainda ligada e soltando vapor domina agora a sala do apartamento.

Léo (em pânico)
Meu Deus! Ele parou aqui! Ele está parado bem perto da janela, percebeu?

Catarina faz que sim com a cabeça, os lábios franzidos de terror. A expressão de Léo devagar vai se modificando, até deixar de exprimir qualquer coisa, de tão atenta e vazia se tornou. Era como se estivesse hipnotizado pelo trem invisível que resfolegava na frente deles. Catarina chama-o, cutuca-o, abraça-o, beija-lhe várias vezes a face. Ele não responde.

Léo (para alguém que estaria dentro da composição)

Entendi. Entendi. A Cármen já está aí? 

Léo vai então caminhando com firmeza em direção à janela. Os olhos vidrados parecem os de um cego.

Catarina (aterrorizada)

Onde você está indo, Léo?! Para onde você está indo, homem de Deus?!

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O trem das seis e meia faz parte de As fúrias, peça em 7 episódios. Leia na íntegra clicando aqui.