O trem das seis e meia

(Um apartamento em São Paulo, decorado frugalmente. Léo e Catarina estão sentados no chão da sala, em posição de lótus, bem perto um do outro. Ele protege uma das orelhas com a mão em concha, para tentar ouvir melhor alguma coisa. O apartamento é pequeno e os sons entram por todos os lados, dificultando obviamente a localização do que ele quer realmente escutar.)


Catarina (sussurrante e já um pouco entediada)
E então? Ele está vindo?

 

Léo (tapando suavemente a boca da namorada e com um fiapo de voz)
Shh... ainda não. Mas deve passar a qualquer momento.

 Catarina (sorrindo e afastando a mão dele da sua boca com bem menos suavidade. Mas continuando a falar no modo sussurrante)

Você tem mesmo certeza?

 Léo
Absoluta certeza.

 

Catarina (depois de fazer um grande esforço para ouvir)                           Não estou escutando nada.

 

Léo
Talvez ainda não esteja na hora. Talvez o seu relógio esteja adiantado.

 

Catarina
Meu relógio nunca está errado.

 

Léo
Bom, o horário era mais ou menos esse. Por volta das seis e meia.

 

Catarina
Você falou que ele passava às seis e meia em ponto.

 

Léo
Eu posso ter me enganado. Faz tanto tempo.

 

Catarina (bufando baixinho, mas sem tirar o sorriso do rosto; mas a voz volta ao tom normal de conversação)
Olha, Léo. Tudo bem. Vamos esquecer essa história. Foi uma ilusão de ótica que você teve. Quer dizer, uma ilusão auditiva, já que esse trem é invisível. Não existe trem nenhum.

 

Léo (também voltando a falar em tom normal)
Tenho certeza que existe. É incrível que você nunca o tenha escutado.

 

Catarina
Fico pouco aqui nesse horário, Léo. A essa hora estou trabalhando, você sabe. Tive de dar uma desculpa para sair do trabalho mais cedo. Mas a gente sempre está aqui nesse horário nos fins de semana. O trem nunca apareceu.

 

Léo
Ele não vem nos fins de semana. Não sei por que, mas só aparece nos dias úteis.

 Catarina (sem conseguir evitar um risinho irônico)

“Além de tudo é um trem trabalhador”.

Léo (fazendo de conta que não escutou o gracejo)
A tua colega de apartamento também nunca escutou?

 

Catarina
A Sandra? Nunca me disse nada.

 

Léo
É incrível. O barulho que esse trem faz é alto. É impossível não escutá-lo.

 

Catarina
No entanto é assim. Você sabe como ela gosta de música. Talvez escute música às seis e meia. (pensa um pouco) Ou cozinhe. É isso. A Sandra cozinha às seis e meia. Mexe com panelas. (senta-se no sofá, acende um cigarro) Relaxe. Não quer beber nada? Comprei cerveja ontem.

Léo (vai sentar-se no sofá ao lado dela. Cruza as pernas de novo na posição de lótus, sem tirar os sapatos)
Obrigado. Não quero nada.

Catarina (olhando com desaprovação os sapatos do namorado em cima do sofá)

Morar em um apartamento onde passa um trem dentro da sala. É estranho.

Léo (também acendendo um cigarro)
O que há de estranho nisso?

 

Catarina (suspira)
Nada.

  

Léo (desfaz a posição de lótus e a abraça)

Vem cá. Você acha que eu estou ficando maluco, não é?

 

Catarina (deixa-se enlaçar com doçura)
Um pouquinho. (pousa o cigarro no cinzeiro e retribuiu o abraço) Mas eu gosto. É diferente.

 

Léo
Esse trem é muito importante para mim.

 

(Catarina ri do comentário. Mas algo a fez afastar-se dele com expressão intrigada. Retoma o cigarro do cinzeiro)

 

Catarina (com expressão intrigada)

É mesmo. Já percebi. Mas porque tanto assim?

Léo (pára para pensar. Assume a cara de bobo de quem sabe, mas não consegue explicar.

Na verdade, não sei.

Catarina (soltando uma longa baforada e esmagando o cigarro no cinzeiro)

Bem. É a sua vida.

 

Léo vai até a janela. Fica olhando para fora. A cara de bobo dá lugar a uma cara sonhadora

 

Léo
Quando eu morava aqui era tão feliz. Era uma república de estudantes. Acontecia cada coisa.

 

Catarina (recostando-se de olhos fechados no sofá)

Eu sei. Você me contou.

 

Léo
Acho que foram os melhores momentos da minha vida.

 

Catarina
Eu também tenho passado bons momentos aqui.

 

Léo (levantando-se alarmado)
Espere, Catarina! Esse barulho... escuta!

 

Catarina (também se levanta e se põe a escutar. É um engano. Volta a sentar-se, decepcionada)
Não, não é. É um caminhão.

 

Léo (começa a caminhar nervoso pela sala)
Eu sabia. Eu sabia. Esse trem passava para as pessoas ouvirem. Você não escutou. A sua amiga não escutou. Ninguém escutou. Ele passou despercebido por anos a fio e desistiu. Mau Deus, algo tão especial e vocês não escutaram! Como vocês são relapsas!

 

Catarina (irritada)
Ei, espere aí! Não precisa partir para o insulto! A gente nem sabe se esse trem existe mesmo! Como você pode dizer que a culpa é nossa?

 

Léo
Eu e a Cármen o escutávamos perfeitamente.

 

Catarina
Cármen... Cármen... é sempre essa Cármen! Porque você não volta com essa tal de Cármen e vai ouvir o trenzinho na casa dela, hein?

Léo (aproxima-se dela e a abraçando, carinhoso)
Ei, não precisa ficar nervosa... Não é nenhuma crise de nostalgia, não. Além do mais, o trem passa aqui, sei lá se passa na casa dela. Aliás, me falaram que ela morreu. Que pulou da janela uns dois anos atrás.

Catarina
Eu estou me sentindo ridícula. Esperando passar um trem dentro da minha sala. Que é só um barulho. Nunca pensou que pode ser um reflexo dos trens da Estação da Luz?

 

Léo
A estação é muito longe daqui.

 

Catarina
Pode ser o barulho das pessoas. Alguém passando o aspirador de pó.

 

Léo
Não. Eu me lembro como se fosse hoje. A gente estava na sala e o trem primeiro buzinava. Depois era o barulho da composição passando a todo vapor.

 

Catarina (pedindo para ele ficar quieto)
Escute.

 

Léo (depois de forçar os ouvidos)
Não. Não é ele.

 

Catarina
É incrível como esse apartamento é barulhento. Nunca tinha percebido.

 

Léo
Sempre achei muito silencioso.

 

Catarina
Tentando ouvir o trem que a gente percebe.

 

Léo
Vocês o espantaram.

 

Catarina
Ele pode ter mudado o itinerário.

 

Léo
Difícil.

 

Catarina
Afinal, porque você quer tanto escutar esse trem? Que diferença faz?

 

Léo
Você não entende. Não posso abandoná-lo.

 

Catarina
Você devia chamar a TV. Iria dar um excelente quadro no Fantástico.

 

Léo
Ora, Catarina.

 

Catarina (enlaçando-o, sensual)
Léo.

 

Léo
Diga.

 

Catarina
Eu estou pensando numa coisa.

 

Léo
E o que é?

 

Catarina (agarra-se a ele com força)
Isso. Não é bom?

 

Léo (desembaraça-se dela)
Temos a noite inteira à nossa frente. Vamos esperar o trem passar. Fique boazinha por enquanto.

 

Catarina
Já são mais de seis e meia, Léo. Ele não vai passar mais.

 

Léo
Não é verdade.

 

Catarina
O que você e a Cármen faziam quando o trem passava?

 

Léo
Nada, ora... a gente o escutava.

 

Catarina
Eu não perguntei isso.

 

Léo
A gente... a gente viajava com ele.

 

Catarina
Devia ser interessante.

 

Léo
E era. A Cármen falava coisas incríveis.

 

Catarina
O que, por exemplo?

 

Léo
Que podia ser o trem do Vladimir Ilich. Você é muito nova, não vai saber quem é. É o Lênin. Que fez a Revolução Russa. Podia ser o trem do Lênin chegando em São Petersburgo.

 

Catarina
Ah.

 

Léo
Que podia ser algum trem fantasma. Amaldiçoado. Que passava só para que alguém o escutasse. Escutasse os gritos dos passageiros, quero dizer. E os salvasse.

 

Catarina (fazendo uma careta)
Que tétrico!

 

Leo

Tentávamos também decifrar o itinerário. Nós perguntávamos: será que ele passava só aqui? Achávamos difícil. Mas não conseguíamos imaginar quais seriam esses outros lugares.

Catarina (rindo)

Deus do céu! Que bando de loucos.

Léo (com voz sonhadora e como se ela não estivesse ao lado dele)
Eu passei todos esses anos pensando no trem. Foi uma sorte ter encontrado você, que mora exatamente aqui, onde eu morei e onde o trem passava.

 

Catarina (inquieta)
Léo.

 

Léo
Oi.

 

Catarina (com uma voz pastosa e melíflua)
Você não me conheceu só por causa do trem, não é?

 

Léo (surpreso)
Que idéia esquisita é essa, Catarina?

 

Catarina (um pouco arrependida pela ênfase colocada na pergunta)
Por um momento imaginei que... você sabe...

 

Léo (irritado)
Que absurdo!

Léo bate nas roupas como se para limpá-las. Vai novamente até a janela. Permanece por um instante outra vez indiferente à existência de Catarina. A atitude distante e o brilho vazio e melancólico do olhar do rapaz fazem Catarina explodir. Vai até o rapaz e o faz girar para diante de si.

Catarina (como numa revelação)
Não... é isso mesmo... é a pura verdade... A maneira como você me conheceu... você veio pegar uns papéis no guarda-roupa... só que não tinha papel nenhum... aquela conversa fiada... como fui tonta! Você poderia estar namorando a Sandra, se fosse ela a atendê-lo! Você estava mesmo era interessado no trem! Nesse trem pirado em que você e essa tal de Cármen viajavam!.

 

Léo
Catarina, espere! Você acha mesmo que eu seria capaz de namorar você só para ouvir o trem? Isso não faz nenhum sentido!

 

Catarina (joga-se no sofá e começa a gargalhar, transtornada)
Meu Deus, cada maluco que me aparece! Você quer reproduzir a vida que levou com a Cármen! Quer me transformar numa Cármen! Meu Deus, que ridículo!

Léo (sentando-se ao lado dela, com uma expressão séria e preocupada)

Catarina. Espera. Você acha mesmo que eu seria capaz de namorar você só para ouvir o trem? Para me lembrar da Cármen? Isso seria totalmente ridículo, como você mesmo disse!

Catarina (tentando segurar o riso, mas transformando-o num soluço)

Meu Deus, cada maluco que me aparece! Como não percebi que essa história do trem era apenas um pretexto? Você queria mesmo era lembrar a vida que levou com a Cármen! Pisar no apartamento onde passou momentos tão maravilhosos ouvindo o trenzinho apitar do lado da tal de Cármen!

Léo
Catarina, você está sendo injusta!

 

A moça vai até a porta e a abre com estardalhaço.

 

Catarina

Sai daqui, Léo. Não quero mais olhar para a sua cara! Pelo menos hoje!

Léo permanece sentado no sofá sem se mexer. Está vermelho de constrangimento.

Catarina (altiva)
Vamos! O que está esperando?

Léo dá um suspiro conformado. Pega o casaco e joga-o no ombro. Vai de cabeça baixa até a porta. Vira-se para se despedir. Mas, do nada, volta para o meio da sala, com o ar de quem encontrou alguma coisa.

Léo (com um gesto decidido para Catarina)
Shh.

 

Catarina
O que foi agora?

 

Léo (muito excitado)
Escuta! Está escutando?

 

Catarina (prestando atenção e arregalando os olhos)
Estou! É mesmo um trem! É o trem da Carmen, Léo!

 

Ouve-se uma buzina e o barulho de uma composição, e depois a de um trem parando em uma estação. O som da fornalha ainda ligada e soltando vapor domina agora a sala do apartamento.

Léo (em pânico)
Meu Deus! Ele parou aqui! Ele está parado bem perto da janela, percebeu?

Catarina faz que sim com a cabeça, os lábios franzidos de terror. A expressão de Léo devagar vai se modificando, até deixar de exprimir qualquer coisa, de tão atenta e vazia se tornou. Era como se estivesse hipnotizado pelo trem invisível que resfolegava na frente deles. Catarina chama-o, cutuca-o, abraça-o, beija-lhe várias vezes a face. Ele não responde.

Léo (para alguém que estaria dentro da composição)

Entendi. Entendi. A Cármen já está aí? 

Léo vai então caminhando com firmeza em direção à janela. Os olhos vidrados parecem os de um cego.

Catarina (aterrorizada)

Onde você está indo, Léo?! Para onde você está indo, homem de Deus?!

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O trem das seis e meia faz parte de As fúrias, peça em 7 episódios. Leia na íntegra clicando aqui.

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