Por Maria Luiza
Xavier Souto, poeta, autora do livro Manhã de Arrebol, publicado pela Orobó Edições.
(Publicada originalmente no site da Editora 8, em 16/2/2017)
Gostei muito d’A garota indonésia, primeiro romance de Alberto
Mawakdiye. O livro foi crescendo e num crescendo minha curiosidade e interesse.
Acho que fiz vista grossa às dicas e o final me surpreendeu. Queria que a
garota indonésia pudesse se materializar em Catarina, femininamente límpida,
inteligente e prática, eternamente jovem e bem resolvida – quase fútil em sua
beleza de fruta banhada de orvalho. Catarina é uma felicidade fácil demais para
Miguel. Ou mesmo no rosto branco de lua cheia de Ana, viçosa e perspicaz. Ou
ainda na graça amiga de Marie, que logo de cara imaginei japonesa, tendo de
fazer um esforço para recompô-la como descrita mais adiante: mineira, sonora,
disfarçada, exalando um frescor bucólico.
Porém, é Miguel
Mastrorrosa quem expõe nossa miserável, moderna, medíocre e ridícula condição,
nossa vida miguelinamente cambaleante. Mas ele – contei nele uns 30-35 anos –,
com seu humor cru e condimentado parecido com o humor malvado dos adolescentes,
ainda é capaz de rir do torpor em que vive mergulhado, do seu “chove não molha”,
do seu “faz que vai mas não vai”. E há uma coisa que nunca tinha visto: o autor
consegue que a própria linguagem (um pouco suspensa) dê o tom do personagem
suspenso no seu cotidiano urbano, turbulento e monótono, sombrio e escancarado
como um lugar-comum, mas entranhado de umas certas luzes e cores, de um certo
arcaísmo interiorano, como é São Paulo em sua estranha fermentação cultural. E
com surpreendentes momentos de inusitada e singular poesia (de São Paulo e do
texto). Miguel está sempre sorrindo de si mesmo, discretamente urbano,
discretamente civilizado, discretamente entediado, discretamente melancólico,
discretamente consciente.
Está e não está no
mundo, sem maiores ligações com a infância e seu passado – vagamente esboçado
na memória do pai e do avô imigrante (confiante e altivo, tão diferente do
migrante brasileiro daqueles tempos e de hoje, arrancado de seu mundo mestiço,
rural e arcaico – um sobrevivente perdido no tempo e no espaço. E tão distante
dos atuais migrantes e imigrantes aqui e mundo afora).
Descrente e
desmotivado para uma vida pequeno-burguesa, a nos lembrar Fernando Pessoa,
Miguel Mastrorrosa admira o vigor e a coragem do avô que desatou amarras,
transpôs oceanos e fertilizou suas raízes em terras distantes. Mas isso
pertenceu a outro século e a outras urgências históricas. Miguel Mastrorrosa
está entregue a um mundo de horizontes sombrios. O espírito aventureiro do avô
ficou para trás, e Miguel se vê um tanto embotado e paralisado em seus desejos.
Sua têmpera contida, desesperançada parece tê-lo retido na adolescência, num
misto de piedade, desespero e crueldade mal disfarçados em seu humor que mescla
ironia e deboche. No entanto, por trás da máscara juvenil transparece o adulto
resguardado num personagem que vai se esboçando nas linhas e entrelinhas, aos
poucos se desnudando e nos revelando sem dó nem piedade, sorrindo de sua/nossa
vida enrascada, onde até a memória vai para o entulho, ou monturo, como se diz
aqui em Minas.
Apesar de suspenso,
Miguel tem um sonho, um desejo de transcendência expresso nas visões luminosas
dos azuis marítimos dos céus brasileiros e na busca de sua musa e música
indonésia. Transcendência tragicamente alcançada.
Um livro que me
prendeu, intrigou e surpreendeu. E me incomodou, como se o personagem (e o autor)
caçoasse do leitor o tempo todo, a ponto de eu demorar tanto a escrever o que
senti (minha ingenuidade exposta). Um livro de solidão.
Daqui fui
transportada para o centro de São Paulo e seu ruge-ruge gigantesco e maquinal,
a dar mostras de que o capitalismo não desiste, mesmo se comendo vorazmente
pelo rabo.
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