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A mulher na porta

    Decidiu que não iria abrir a porta. E deixou a ex-mulher bater e gritar, bater e gritar, enquanto procurava algum programa de esportes na TV. Os gritos ecoavam agudos e esganiçados e, não sabia por que, fazia-o pensar nos gritos dos fantasmas – no caso, um fantasma furioso e desesperado, lançando alguma maldição contra quem se recusou a puxá-lo do limbo. Não precisou esperar muito: minutos depois, do lado de fora só vinha o silêncio. Com um suspiro de alívio, abaixou o som da TV até o inaudível, levantou-se e foi colar o ouvido na porta: nada. Apenas o barulho distante de utensílios nos apartamentos vizinhos, uma tosse masculina, alguém ouvindo bossa nova, provavelmente a moça do 38, aquela de cara triste. Ia abrir a porta para se certificar se ela tinha ido mesmo embora quando sentiu que seus pés estavam molhados. Olhou para os pés, e de fato. Oh, não. A desgraçada não só continuava do outro lado como arranjara um jeito de jogar água para dentro do apartamento, uma água que se infiltrava em suaves filetes por debaixo da porta.
    Ficou observando, aflito, a água escorrer por debaixo dos seus pés e avançar pelo carpete, que por azar mandara lavar a seco noutro dia. Pensou em gritar para ela, mandá-la parar com aquela bobagem, mas isto seria admitir a derrota: jurara nunca mais vê-la, fazer de conta que ela jamais existira, não discutir nunca mais sobre com quem ficaria o apartamento. Então era preciso continuar o jogo do silêncio. Correu para a área de serviço e pegou todos os panos de chão que conseguiu juntar. Com presteza de faxineira experiente, vedou o vão da porta e espalhou os panos da melhor forma que pôde pela área molhada. Depois eu seco melhor. Vamos ver quem vencerá. 
    Voltou para o sofá com um sorriso triunfante pendurado nos lábios, e aumentou o volume da TV. Continuou a procurar algum jogo, mas só achou um de basquete – esporte que detestava, mas pelas circunstâncias estava mais do que bom. O jogo era chato de doer, uns negros americanos enormes fazendo uma cesta depois da outra e saindo para comemorar com expressão arrogante. Era um time de amarelo contra outro time de azul. Vou torcer pelos amarelos. Espreguiçou-se e relaxou no sofá. Mas mal começara a se concentrar quando sentiu outra vez os pés encharcados. Horrorizado, percebeu que estava com os pés dentro de uma fina lâmina d’água, que todo o chão da sala estava coberto por uma fina lâmina d’água. Aquela louca continua lá fora, gemeu. Vedar a porta não adiantara nada, os panos não serviram para nada. 
    Foi até a porta disposto a gritar com ela, a bater nela, se fosse preciso. Com cara de nojo, retirou com dois dedos os panos que vedavam a porta e abriu-a de uma só vez e com violência: mas viu, surpreso, que não tinha ninguém lá fora. Ela se cansara e fora embora. Menos mal. Esperou mais um momento para atestar se ela tinha realmente partido. Tudo indicava que sim. Sacudiu os ombros com indiferença e entrou, dando duas voltas na chave e colocando a corrente. Ia dar um trabalho danado secar o carpete.   
    Mas percebeu depressa que era melhor nem pensar nisso. Era dar o fora enquanto fosse possível. A umidade espalhava-se pelo apartamento de maneira ominosa, era possível ver que alguns cogumelos atravessavam o carpete e já estavam com as suas pequenas copas acima da lâmina d’água, e que do teto e das paredes cresciam estalactites ao redor do bolor. E os gritos dela recomeçavam, vindos agora não do lado de fora, mas de dentro dos armários, das paredes, dos cogumelos, das inacreditáveis samambaias que surgiam por toda parte ele não sabia como, era uma algaravia ensurdecedora, sem falar do desenho da cara dela formando-se e desmanchando-se na lâmina d’água, uma floresta de maldições e de pranto e de fantasmas da qual era melhor fugir antes que se perdesse nela para sempre, ok, ok, você venceu, pode ficar com o apê, estou dando o fora.
 
Este conto é parte de Arboredo. Você pode baixar o livro inteiro em PDF. Clique aqui

Bon voyage

Sonhou com uma cidade portuária: cargueiros ancorados no cais, ruas de paralelepípedos úmidas de lua, uma sirene que soava grave e ininterrupta, como a anunciar um iminente ataque aéreo. Não tinha ninguém no sonho a não ser ele mesmo. Sonhou que caminhava pelo cais e que os seus passos ecoavam contra as tábuas do chão, contra os muros dos armazéns e o casco dos navios. Tinha de achar o tal barco, onde embarcara tantos anos antes para um lugar ignorado e de cuja viagem jamais retornara. Estava certo de que o navio chegaria naquela noite, trazendo ele mesmo com as boas novas, para contar as aventuras que ele não vivera. Era estranho. Estava num lugar obviamente perigoso, mas sentia mais curiosidade do que medo. Defrontar-se assim com o outro que vivera a vida que ele deveria ter vivido, mas não viveu, essa idéia ardia-lhe nas têmporas. Que aventuras ele iria lhe contar? De que amores ele falaria? Teria se saído bem? Ou teria fracassado e desembarcaria dentro de algemas, empurrado pelos tiras de alguma gendarmeria estrangeira?

Percorria o cais que rangia sob os pés sem encontrar ninguém pelo caminho, nem um marinheiro, nem um vigilante, nem uma mulher da noite. Nem mesmo um gato assustado, ou um bando de ratos. Apenas as sombras o cercavam, cada vez com um novo desenho, por vezes uma mariposa gigante, por vezes uma árvore, por vezes o vulto do seu pai. Lia, um por um, os nomes de todos os navios ancorados. Um navio de casco negro como se emerso de um livro juvenil estava de fato a esperá-lo no final do cais. Reconheceu o barco: era o mesmo que levara o outro naquela viagem, anos antes.

A escada estava estendida para que ele subisse. Emocionado e tremendo um pouco, mas decidido, venceu devagar os degraus e saltou para o convés. Olhou em volta, desconfiado. Não parecia ter ninguém ali. Mas acabou por percebeu um vulto atrás do timão, na cabine de comando. Era o capitão, reconheceu logo pela barba e pelo boné. Tentou encontrar uma porta que o levasse até ele. Em vão. Não havia portas. Então assobiou. O capitão virou-se para ele muito devagar, começou a olhá-lo longa e detidamente, mas não lhe enviou gesto algum. Apenas levou à boca um assobio de marinheiro.  Viu que o capitão assobiava com força uma, duas, três vezes. Viu que alguns marinheiros surgiram apressados e retiraram a escada. Viu que o navio ligava os motores. Viu que não conseguiria sair do navio. Viu que não conseguiria acordar. Com horror, percebeu que ele é que teria de ir ao encontro do outro, onde esse outro estivesse.


* Este conto é parte do livro Arboredo. Você pode baixá-lo inteiro em PDF. Clique aqui

           

A melhor madeira para usar na construção de barcos

         “A madeira tem de ser de boa qualidade, senão deteriora, e o barco um dia afunda”, o meu tio me diz, enquanto beberica a cachaça diretamente da garrafa, adernando para trás e para frente na cadeira de balanço que faz tanto tempo mantém no alpendre de sua chácara, e não percebe já estar meio apodrecida. Ele olha comovido para o enorme, imenso terreno, onde acaba de plantar dezenas de mudas de cedros-do-líbano, de modo, segundo explicou, a aproveitar futuramente a madeira para construir uma arca. “A nova Arca de Noé”, suspira, sem olhar para mim. “Para me salvar, assim como a todos os animaizinhos de Deus”.

Eu só consigo rir da ideia dele. Mas disfarçadamente, é claro. Meu tio é excêntrico e bonachão, mas jamais gostou de ser ridicularizado. E a ideia dele não é apenas ridícula – é louca. Se tanto, porque ele tem mais de 60 anos, e cedros-do-líbano, toda criança sabe, demoram décadas para crescer. Vai morrer bem antes disso, talvez nem veja os cedros florescerem.

Mas ele parece adivinhar meus pensamentos.

“Não, não vou morrer antes que eles cresçam. Ninguém morre antes de cumprir sua missão”, ele me diz, continuando a olhar tranquilo e satisfeito para a plantação de cedros.

Meu tio está louco, é evidente. Toda a família sabe disso. Mas agora é tarde para contrariá-lo, e muito mais para eventualmente interná-lo. Pois a “loucura dos cedros” – como a família batizou a nova aventura dele – parecia ser antes um sintoma de cura, do que de doença. Até ele tomar essa decisão, não usava o terreno da bonita chácara que herdara dos pais para plantar praticamente nada. O terreno não passava de um matagal enfeitado por algumas árvores velhas e com um pé de couve aqui e ali. 

Ademais, é uma loucura que pode, de qualquer forma, se mostrar lucrativa para os nossos descendentes. Cedros-do-líbano podem ser usados em muitas outras coisas além da construção de barcos, como já ensinavam os fenícios, cujos magníficos navios eram feitos com a madeira dessa árvore.

Eles nos mostraram que a madeira do cedro, homogênea e aromática, pode hoje ser ótima para a construção de bangalôs e de bugigangas diversas. E o meu tio mesmo me contou que os egípcios também utilizavam a resina dos cedros na arte da mumificação, que um dia poderá voltar a ser uma prática habitual entre os nossos milionários e potentados – bem, por que não? Do jeito que o mundo anda...

Pergunto ao meu tio como ele fará para reunir exemplares de todas as espécies de animais que existem no planeta. O catálogo é muito maior do que na época de Noé (aliás, quantas espécies não teriam sido deixadas para trás?). Ele apenas sacode os ombros como resposta. E dá uma risadinha: “Muito mais difícil será arrumar uma mulher para vir comigo”. Rio também. Digo que ele é bem apessoado, bom de conversa e, afinal, tem dinheiro - e que não será tão difícil assim.

“Vai ser, vai ser”, ele suspira. “Pelas mesmas razões que os conterrâneos de Noé não quiseram acompanhá-lo. Não foi porque não acreditassem na chegada do Dilúvio. Mas porque preferiam morrer afogados a sobreviver num barco apertado ao lado de girafas, cabritos e aranhas e a de um cara chato como o Noé”.

Dá outro longo suspiro enquanto continua a olhar para a plantação de cedros.

“Talvez estivessem certos”.


* Este conto é parte do livro Arboredo. Você pode baixá-lo inteiro em PDF. Clique aqui