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Um desses vilarejos da serra

É um desses vilarejos da serra
entre a cidade e o mar
Onde o sol ilumina
mas não aquece
As casas de muros caiados
E telhados baixos
 
Onde a estrada próxima é um fantasma da família
Brincando de esconde-esconde na neblina
Com seus escaravelhos de metal
De olhos injetados
 É um desses vilarejos da serra
onde os gatos morrem de frio
em cima dos fornos em braseiro
 
E esquilos chegam de mansinho
Para roerem as costelas
Das escadarias
 
Onde é tão pesada a nuvem de fuligem e poeira
deixada pelos automóveis
carregados de bagagem
 
Que a vegetação
já sufocada pela umidade
respira como um asmático cavando o ar
Com as mãos vazias
 
É um desses vilarejos da serra
Onde o mar é mais distante para os moradores
Do que para os turistas da cidade
 
(Mas de onde, segundo os antigos,
era possível
em dias muito frescos
sentir o cheiro da maré
E também o cheiro podre dos peixes
abandonados na areia
pelos pescadores
E cujos olhos se transformam em conchas
se a noite é de lua cheia)
 
É um desses vilarejos da serra
Indiferentes aos caminhões de gasolina
Estacionados no caminho
para o lago
com seus choferes de medalhão e ray-ban
 
Onde os jovens que ouviram os planos do governo
De duplicar a rodovia
De modo
a facilitar a vida dos turistas
Sonham com a profissão de agrimensor
 
Mas é um desses vilarejos
Onde há sempre agrimensores verdadeiros
A medir os cotovelos
das ruas
E os gritos das frutas fermentando nas sacadas
 
Onde os namorados selam o compromisso
Passeando pela mata
que a cada passo se torna mais fechada
(Muitos deles não voltaram. Nem os ossos
foram jamais encontrados. Teriam ido todos para o mar?)
 
E há sempre um lampião sobrevivente de outras eras
iluminando
uma antiga avenida principal
 
Escura
Cortada por uma brisa úmida e selvagem
E de onde se pode ouvir escapar desde o casario
Finadas canções
ainda entaladas na garganta
 
É um desses vilarejos da serra
Onde as mulheres colhem mudas de plantas
Que depois replantam
cuidadosas
nos fundos da casa
À espera de que nasça uma mandrágora
 
E nas noites quentes
Grupos se amontoam nas soleiras
Com um copo de cerveja a animar os sonhos
Límpidos e perfeitos como um cristal
 
Onde o pássaro azul bate as asas
- alucinado.

* Este poema é parte de O Mapa-múndi aos pés da cama. Você pode baixar o livro inteiro em PDF. Clique aqui

 


Dia

O sol
bate
na espiga
de milho

Veja
o amarelo
a debater-se
na sombra

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As aves migratórias


Nos aprisionaram no celofane de um dia
que não acaba mais

Um farol de locomotiva ilumina os campos
onde cultivamos a falta de esperança

Passeamos sôfregos pelos andaimes
de uma fábrica em demolição

Onde as aves migratórias constroem seus ninhos
com o ranço das ameixas

Que marinheiro nos oferecerá o sonho
substancioso como um prato do dia?

Enquanto isso
esperamos

Como quem empilha barris de azeitonas
num cemitério de azulejos

Com o desespero dos animais
que não foram escolhidos para a arca

* Este poema é parte de O Mapa-múndi aos pés da cama. Você pode baixar o livro inteiro em PDF. Clique aqui

O mapa-múndi aos pés da cama


Ela tinha um mapa-múndi aos pés da cama
E estava na cara que um dia iria embora.
Era mais ou menos assim: não havia pão, mas havia jazz
Pilhas de discos de jazz, mas também bossa-nova
Blues, e música indonésia
Tristíssima
Que ela ouvia de manhãzinha
Enquanto tomava o banho.
O apartamento tinha uma varanda com um antúrio
E peixes desenhados na parede.
Eu sabia que ela iria embora.

Quando a conheci havia um campanário na minha cabeça
E eu recendia a corvos de vôo curto
Que pousaram suavemente no seu antebraço.
“Não se iluda”, ela me disse. “Vê aquela manequim na vitrine?
Sou eu, mas não é a mesma coisa”.
Foi o amor da faca rondando o aguaceiro
E naquela tarde
Profundamente respiratória
Percorremos as ruas por entre os frágeis arabescos
Deixados pelos transeuntes
Arrancando as cicatrizes que a noite costurava no dia
E com elas construímos vasos sangüíneos
Que nos levaram até o coração de nós mesmos.
“Moro ali”, ela me disse. “Tenho
Tantos discos que já não sei escolher”.

Cada dia ela pregava o alfinete num ponto do mapa-múndi
Estava na cara que ela iria embora.
Mas a dor era compensada
Quando passeávamos no bairro das alfaiatarias
E quando no final da noite
Parávamos para beber vinho tinto gelado
Na adega com uma lágrima na porta.
A dor era sempre compensada
Quando víamos uma freira
A despejar óleo fervente sobre o formigueiro
E as árvores se descabelarem
Sob a chuva enlouquecida pelo vento.

Era triste saber que os seus cartões postais
Às vezes sangravam dentro do guarda-roupa.
Estava na cara que ela iria embora.

Mas tínhamos uma lei, a de não nos queixarmos nunca
Nem quando a espantosa solidão da cidade
Com seus uivos e maledicências
Enchia-nos a cabeça de apreensões e requerimentos
Nem quando um navio em chamas
Insistia em subir pela sua mão
E um enfermeiro furava os olhos da noite
Com um ramo envenenado, fazendo-a encolher-se de dor.

Pois sempre valia a pena quando fazíamos o amor saltar à nossa frente
Palhaço de água
Para que ele nos envolvesse com seus pássaros
E suas acrobacias.
Sempre valia a pena
Quando nos deixávamos rolar sob uma escura lona de estrelas
Até nos destilarmos em suor
Até pedirmos o perdão que se pede em horas assim
Intimamente noturnas
E cheirando a paz e sêmen
Quando todo o riso é solene e propiciatório
E o grande relógio da cidade torna-se o escravo inútil de si mesmo.
Sempre valia a pena quando íamos para a varanda
Sentir o vento talhar nossos rostos.

Mas ela tinha um mapa-múndi aos pés da cama
E estava na cara que um dia iria embora.

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O parque

Definitivamente, a arte da fotografia não é para qualquer um. Vejo que Tomás e Arlete estão saindo de novo para fotografar. Eles adoram fotografar o parque que existe em frente ao prédio, embora o parque não tenha árvores nem flores bonitas, e o verde seja descolorido, e haja tantos mendigos dormindo nos bancos. Mas eles adoram fotografar este parque. Parece-me que, nas últimas semanas, o parque tornou-se o seu único tema. A arte da fotografia não é para qualquer um. É preciso mesmo um pouco de obsessão.

Lá vão eles, carregando os equipamentos para dentro do parque. Não há dúvida de que eles sabem trabalhar. Primeiro, eles escolhem o alvo. Montam o equipamento sobre um tripé, pois eles trabalham com tripé, como em um estúdio, mesmo que o cenário seja ao ar livre. Depois, passam longos minutos, por vezes quase uma hora, ajustando a distância, as lentes, a iluminação. Tomás é o maestro; Arlete, a executante. É de dar gosto observar como ele sabe dar o tom e o andamento e como Arlete sabe cumpri-los. Não há um gesto de Tomás que não seja redondo, profissional. E Arlete sabe como ninguém mover a máquina para cá e para lá, com movimentos tão rápidos quanto precisos, como uma gata brincando com os novelos, feliz por ser tão eficiente.

Não estou exagerando: a coisa realmente flui. É de alta musicalidade. Daqui dá para ver que eles finalmente acertaram o foco: estão fotografando uma grande cesta de lixo dentro da qual alguém jogou um velho guarda-sol. É um solitário guarda-sol dentro de uma grande cesta de lixo. Definitivamente, a arte da fotografia não é para qualquer um. É preciso um pouco de obsessão. Não sei se era o tipo da coisa que merecia ser fotografada. Um guarda-sol jogado dentro de uma cesta de lixo num parque sujo da cidade. Mas eles o estão fotografando. Devem ter as suas razões.

Bem, parece já que encerraram o expediente. Foi apenas um foto, hoje. Mas que eles devem acreditar de grande valor artístico, sentimental. Atravessam a rua de volta para o prédio enlaçados como um casal de namorados, rindo, felizes e tranquilos. Nunca tive coragem de perguntar o que eles pretendem fazer com tantas fotografias daquele parque. Mas o que importa? O que sei é que não vejo nada de extraordinário no parque, a não ser a sua enorme feiúra e sujeira. Passo, no entanto, muitas horas por semana debruçado à janela olhando para ele. Tomás e Arlete devem compreender profundamente a diferença entre viver e não viver. E devem sofrer muito com isso.

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