Advertência

Muitos mistérios rondam o Saxofone de Trèves. Inclusive se o instrumento ainda existe, ou se de fato existiu, hipótese defendida por alguns especialistas.
 
De qualquer forma, desde a primeira notícia sobre a criação desse excepcional saxofone, produzido com uma liga metálica inusual, no século 19, o instrumento tornou-se motivo de grande interesse para pesquisadores da História da Música. E não apenas estes.
 
Relatos dispersos em publicações e manuscritos de diversos países e épocas estimularam intensa investigação sobre a vida e trajetória do saxofone criado pelo extravagante luthier francês Benoît de Trèves.
 
Este livro é outra tentativa de desvendar o enigma que envolve esse instrumento repleto de histórias.  
 
* Este capítulo faz parte de O saxofone de Trèves, lançado em agosto de 2020. O livro está à venda em edição impressa e digital na Amazon.
 

O melhor saxofone do mundo

O saxofone tido como o mais caro do mundo foi apresentado em meados dos anos 2010 em uma feira de milionários na Tailândia. Este instrumento teve o seu valor estimado em cerca de US$ 60 mil. Peça exclusivíssima, ele foi exibido em honra do rei tailandês, que, assim dizem, o apreciou muitíssimo.

Feito por luthiers altamente qualificados e montado em 65 horas, este saxofone, produzido com as mais raras ligas metálicas e chapeado com 2,82 onças de ouro, foi ainda decorado com diamantes de 2 quilates e vidro especial.
Não se sabe, porém, se a sonoridade dele faz jus ao uso de tanto material nobre, já que não foi fabricado para ser tocado em shows ou gravações, mas para ser uma peça de colecionador, e guardado a sete chaves. 

A fama de o melhor saxofone do mundo continua sendo defendida pelo velho sax Selmer Mark VI, o preferido por nove entre dez jazzistas, e que também está longe de ser barato. Um Selmer Mark VI malhado pode custar até US$ 8 mil. 

Trata-se, este saxofone, de uma das glórias da indústria da França. Tanto que em 2016 o astronauta francês Thomas Pesquet levou um modelo para tocar em uma estação espacial então em órbita da Terra, de modo a homenageá-lo.
Pesquet permaneceu no espaço quase 200 dias. Além de tocar o incensado saxofone, ele realizou várias experiências científicas e fez duas caminhadas espaciais, num total de mais de 12 horas fora na estação.

Já os saxofones mais em conta são os produzidos na China e no Vietnã (com a licença dos fabricantes chineses). Algumas versões para estudante custam meros U$ 400. Os modelos mais comuns saem por volta de US$ 700.
Apesar da acusação de serem meio desafinados, de apresentarem sonoridade ruim e de se estragarem com facilidade, os saxofones chineses são, faz anos, os mais vendidos do mercado.

 Diz-se nos círculos mais bem informados, porém, que o melhor e mais caro saxofone do mundo prossegue sendo o Saxofone de Trèves, do qual só existe o protótipo fabricado pelo luthier maldito em meados do século 19. 

As poucas tentativas de produzir versões piratas do mítico instrumento foram facilmente desmascaradas, devido à vulgaridade das ligas usadas na fabricação das cópias e por elas não chegarem nem perto das possibilidades sonoras do original. 

Estima-se que o preço do Saxofone de Trèves esteja hoje na casa dos milhões de dólares. O problema é que ninguém que já o teve em mãos, pelo que se diz, foi capaz de reconhecê-lo – a dificuldade começaria no fato de que, por ser um protótipo, Trèves não se preocupou em identificá-lo. 

Nem o relativamente bem conhecido sinete da oficina de Trèves, presente nas cornetas que ele fabricava, foi colocado no sax. Praticamente todos os que o possuíram alguma vez tomaram-no como um instrumento apenas antigo e bonito, mas com algumas excentricidades técnicas, passando-o depois para frente a preço de banana. Assim, teria sempre estado por aí, solto no mercado, rigorosamente incógnito. 

Para os mais bem informados, talvez só alguns luthiers tenham tido contato com ele sabedores de sua real identidade, já que até o sax de Trèves precisa de vez em quando de pequenos trabalhos de manutenção, como a troca de sapatilhas. Mas os luthiers são famosos pela discrição, além de detestarem se meter em encrencas.

 
* Este capítulo faz parte de O saxofone de Trèves, lançado em agosto de 2020. O livro está à venda em edição impressa e digital na Editora Viseu.



Um desses vilarejos da serra

É um desses vilarejos da serra
entre a cidade e o mar
Onde o sol ilumina
mas não aquece
As casas de muros caiados
E telhados baixos
 
Onde a estrada próxima é um fantasma da família
Brincando de esconde-esconde na neblina
Com seus escaravelhos de metal
De olhos injetados
 É um desses vilarejos da serra
onde os gatos morrem de frio
em cima dos fornos em braseiro
 
E esquilos chegam de mansinho
Para roerem as costelas
Das escadarias
 
Onde é tão pesada a nuvem de fuligem e poeira
deixada pelos automóveis
carregados de bagagem
 
Que a vegetação
já sufocada pela umidade
respira como um asmático cavando o ar
Com as mãos vazias
 
É um desses vilarejos da serra
Onde o mar é mais distante para os moradores
Do que para os turistas da cidade
 
(Mas de onde, segundo os antigos,
era possível
em dias muito frescos
sentir o cheiro da maré
E também o cheiro podre dos peixes
abandonados na areia
pelos pescadores
E cujos olhos se transformam em conchas
se a noite é de lua cheia)
 
É um desses vilarejos da serra
Indiferentes aos caminhões de gasolina
Estacionados no caminho
para o lago
com seus choferes de medalhão e ray-ban
 
Onde os jovens que ouviram os planos do governo
De duplicar a rodovia
De modo
a facilitar a vida dos turistas
Sonham com a profissão de agrimensor
 
Mas é um desses vilarejos
Onde há sempre agrimensores verdadeiros
A medir os cotovelos
das ruas
E os gritos das frutas fermentando nas sacadas
 
Onde os namorados selam o compromisso
Passeando pela mata
que a cada passo se torna mais fechada
(Muitos deles não voltaram. Nem os ossos
foram jamais encontrados. Teriam ido todos para o mar?)
 
E há sempre um lampião sobrevivente de outras eras
iluminando
uma antiga avenida principal
 
Escura
Cortada por uma brisa úmida e selvagem
E de onde se pode ouvir escapar desde o casario
Finadas canções
ainda entaladas na garganta
 
É um desses vilarejos da serra
Onde as mulheres colhem mudas de plantas
Que depois replantam
cuidadosas
nos fundos da casa
À espera de que nasça uma mandrágora
 
E nas noites quentes
Grupos se amontoam nas soleiras
Com um copo de cerveja a animar os sonhos
Límpidos e perfeitos como um cristal
 
Onde o pássaro azul bate as asas
- alucinado.

* Este poema é parte de O Mapa-múndi aos pés da cama. Você pode baixar o livro inteiro em PDF. Clique aqui