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O Grande Pneu

Muitos juram tê-lo visto – não uma, mas várias, várias vezes. Ou pelo menos escutado o barulho de borracha amassada, misturado com ecos lancinantes de metal batido, que sempre acompanha o pneu quando ele passa, sombriamente, pelo bairro desprezível. É um barulho alto e assustador; e que também antecipa a aparição do pneu, sempre noturna; e quem conhece a estória vai correndo se esconder debaixo da cama. Rezando para que o barulho seja apenas um sinal de que o pneu está passando pelas vizinhanças, e não irá incomodar por enquanto. Pelo menos por enquanto.

Claro, muitos também juram que o tal pneu não é mais do que uma alucinação. Um sonho mau de gente torturada. Onde já se viu - um grande pneu, tipo Firestone ou Goodyear, que tinha servido de totem no jardim de entrada de uma revendedora de tratores, e resolveu fugir para rodar sobre aquele pobre bairro da periferia, atormentando os moradores. É sintoma de falta do que fazer, dizem esses céticos; isso é que dá manter uma oficina do diabo no cérebro desocupado.

Esses céticos, contudo, não conseguem explicar como o pneu sumiu da revendedora; na verdade, ninguém tem a menor ideia do que aconteceu com ele. Roubado, ele não foi; que ladrão se daria a esse trabalho? Teria de ser muito trouxa. O próprio dono e os funcionários da revendedora desconhecem o paradeiro do pneu. Um belo dia, eles chegaram para trabalhar, e pronto: cadê o pneu que estava aqui?

Muitos suspeitam que algum funcionário rancoroso com o patrão, cuja fama de mau pagador era lendária, tenha roubado o pneu para picotá-lo e vender o material por quilo. Mas esta operação, necessariamente de grande porte, dado o tamanho do pneu, exigiria ao menos o uso de um pequeno caminhão. Alguém teria visto.

De qualquer modo, corre pelo bairro uma lista cada vez mais alentada das vítimas do Grande Pneu. Se bem que falar em vítimas, nesse caso, seja um tanto exagerado. Fisicamente, o pneu não faz nada contra ninguém. Não atropela ninguém; simplesmente vai atravessando as paredes e as pessoas como uma assombração, não deixando nenhum rastro ou causando algum tipo de dor.

É óbvio que os relatos das aparições do Grande Pneu já chegaram aos ouvidos da polícia. Várias vezes. Mas o máximo que o delegado se dispôs a fazer foi mandar uns guardas interrogar os denunciantes nas suas próprias casas, por onde o Grande Pneu teria passado, e vasculhar salas e quintais à procura de indícios da passagem do monstro. Nunca encontraram nada. Na verdade, as visitas dos policiais estão rareando, e o caso, na delegacia, vai virando devagar motivo de piada para os tiras.

Para quem jura ter já se confrontado com o Grande Pneu, não há motivo nenhum para piada. Todos juram ter acontecido algo com eles na passagem; todos juram ter mudado em algum sentido, e sempre para pior. Como se algo tivesse sido tirado deles. “Um naco da alma”, como disse uma das vítimas. Talvez seja isto mesmo que aconteça. Pelo menos duas ou três vítimas garantem que vislumbraram, na parte interna do pneu, cabeças flutuantes e evanescentes, de gente conhecida do bairro, gritando e gemendo, como se estivessem na Roda Gigante do Inferno.