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Lilibeth

Como uma falsa inglesa perdida numa farra tropical
Caindo de bêbada numa rua de paralelepípedos desta cidade tão pequena
Lá vai Lilibeth
 
Sob os rojões da quermesse
 
Que não abafam a ladainha do piano mal tocado
Pelo careca rico seminu
A gargalhar no quarto alugado a preço vil
 
Lá vai Lilibeth
 
A pobre Lilibeth
 
Ela sabe do arco-íris que nasce sob a pálpebra do macaco
- Poderia incinerar a Barca do Inferno
 
Mas também sabe que as Pragas do Egito estão escorrendo como pus
Do braço arrancado do dia
 
Pobre Lilibeth
Como uma falsa inglesa perdida numa farra tropical
Lá vai ela
 
Caindo de bêbada numa rua de paralelepípedos desta cidade tão pequena
 
Deixemos Lilibeth morrer do seu amor
Deixemo-la sofrer
 
Nada temos com a dor de Lilibeth
 
A não ser que desejemos o amor de Lilibeth
A não ser que desejemos sofrer com Lilibeth
 
A que sabe das Pragas do Egito
 
A que sabe da Barca do Inferno
 
- Sim. Amanhece devagar
Tão devagar que as luzes dos postes já bocejam de sono e de tédio
 
E os macacos riem - como se riem!
Nesta noite abominável
 
Este poema faz parte do livro Os campos de caça do senhor, que pode ser lido na íntegra, ao fazer o download aqui.

Parisiennes

Você só conhece uma cidade – ela dizia – se permanecer nela seis horas

Ou seis meses.

 

Jamais a conhecerá se permanecer seis semanas.

 

Eu levava em conta essa opinião.

 

Afinal, tratava-se de Buenos Aires.

 

Onde as gárgulas nos acompanham com os olhos

Do telhado dos velhos edifícios

Sulcados pela chuva.

 

E de quando em quando uma delas salta à nossa frente

Para filar um Parisienne.

 

Eu dizia para a minha guia, rindo

Enquanto estendia

O maço para a gárgula: “Estou aqui há cinco semanas.

Vou então perder o prazo de validade?”

 

Ela sorria.

“Sim, você vai. Por isso terá de completar seis meses”.

 

Ela era muito amiga de uma gárgula

Em forma de leoa alada

Clássica

Que zelava por uma livraria.

E que estava sempre com folhas de plátano grudadas nas suas asas.

 

A gárgula não podia vê-la passar

Que descia correndo pelo encanamento e lhe pedia para comprar vinho para ela.

 

“Esse bichinho é meio alcoólatra”,

Ela comentava depois comigo. “Trabalhava antes numa adega”.

 

Ela sempre estava de azul entre os prédios beges e cinzas

De Buenos Aires.

 

Contava umas histórias sobre a repressão

Nebulosas e tristes.

 

Mas quando íamos à Boca

Aos portões amarelos

Ela se vestia sempre de cinza.

 

Nem precisava me explicar por quê.

 

Ela me perguntava se eu sabia

Que Buenos Aires

Fora construída sobre uma mina de ferro.

 

Daí o tango

Os repuxos na alma

 

Os estragos na bússola

 

E os estranhos desenhos que a umidade desenhava nas paredes.

 

Eu caminhava com ela nos escondendo da chuva

Sob o olhar faminto das gárgulas.

 

E ia me deixando ficar

Imperceptivelmente

 

Implacavelmente.

 

Bebendo vinho e fumando cigarros negros

 

Fazendo também amizade com as gárgulas

 

Enquanto a bússola girava como louca.

In memoriam

Perguntaram a Bertrand Russell
Do que mais ele sentia falta
Poucos dias antes
De o filósofo completar 100 anos

O velho suspirou
Com o olhar perdido na sombra da janela:
“De contemporâneos...”

Sim, há ainda jasmins nas avenidas
Bules de café
Fervendo nos fogões

E um deus a nos proteger da areia e da neblina
E dos antílopes que vêm de longe pastejar a solidão

Somos gratos por ter contemporâneos
Somos gratos por ter jovens e velhos e crianças e animais
Acima das nossas cabeças e abaixo dos nossos pés
Do lado da nossa cama

Dentro do álbum que não abrimos nunca
Na agenda de endereços onde há sempre alguém que já morreu
Ou nos abandonou

Sim, certamente eu não devia estar aqui
Contemplando este mar como se deste ato, tão simples, resultasse uma viagem

Que me levasse para o outro continente
Para a minha terra antípoda
Onde você talvez tenha vivido e sonhado desde sempre

Lembra?
Dividimos o sonho como quem divide um pão e um castiçal

E quebramos um a um os vitrais entre essa terra ressecada
E a outra lá, apenas intuída, e tão prenhe de umidade

Sim, caro Bertrand, o esquecimento é um homem de 100 anos
Festejando pelas ruas onde já não pisam seus contemporâneos

Enquanto o jasmim afoga a noite
Em golfadas de perfume, na espera que amanheça

* Este poema faz parte do livro Os campos de caça do senhor. Baixe o livro completo aqui.

Rap dos campos de caça

Eles nos dão a vida em conta-gotas
Eles nos dão a corda
Que é pra gente mesmo se enforcar

Nos campos de caça do senhor

Você teve a vida toda
Toda a vida
A vinda inteira
Todo dia
Todo santo dia
Pra encontrar ouro na Serra Pelada
E até agora nada

Os campos de caça do senhor

É preciso se agarrar no arame
É preciso se agarrar no ringue
Porque a gente tem de se agarrar o tempo todo
Toda a vida
Todo dia
Todo santo dia
Para não cair
Pra não escorregar

Nos campos de caça do senhor

O limpador de vidros tem de se agarrar
O tira que é alpinista tem de se agarrar
A mulher da vida tem de se agarrar
Todo mundo tem de se agarrar
Toda a vida
Todo dia
Todo santo dia

Nos campos de caça do senhor

Temos de aguentar o tranco
Embaçar a mente
Temos de ficar contentes
Mas não estou contente
Quem disse que eu estou contente
Por mim já não seguia em frente

Os campos de caça do senhor

Cada um com seus truques
Cada um com a sua obsessão
Cada um com o seu feitiço
A sua maldição

Nos campos de caça do senhor

A vida toda
Toda a vida
A vida inteira
Todo dia
Todo santo dia

Nos campos de caça do senhor

Você tem de se agarrar em mim
Sozinho ninguém sai da areia movediça
Você tem de se agarrar no meu cabelo
No meu pelo
Meu pijama
Você tem de acender a minha chama

Nos campos de caça do senhor

* Este poema faz parte do livro Os campos de caça do senhor. Baixe o livro completo aqui.