Bon voyage

Sonhou com uma cidade portuária: cargueiros ancorados no cais, ruas de paralelepípedos úmidas de lua, uma sirene que soava grave e ininterrupta, como a anunciar um iminente ataque aéreo. Não tinha ninguém no sonho a não ser ele mesmo. Sonhou que caminhava pelo cais e que os seus passos ecoavam contra as tábuas do chão, contra os muros dos armazéns e o casco dos navios. Tinha de achar o tal barco, onde embarcara tantos anos antes para um lugar ignorado e de cuja viagem jamais retornara. Estava certo de que o navio chegaria naquela noite, trazendo ele mesmo com as boas novas, para contar as aventuras que ele não vivera. Era estranho. Estava num lugar obviamente perigoso, mas sentia mais curiosidade do que medo. Defrontar-se assim com o outro que vivera a vida que ele deveria ter vivido, mas não viveu, essa idéia ardia-lhe nas têmporas. Que aventuras ele iria lhe contar? De que amores ele falaria? Teria se saído bem? Ou teria fracassado e desembarcaria dentro de algemas, empurrado pelos tiras de alguma gendarmeria estrangeira?

Percorria o cais que rangia sob os pés sem encontrar ninguém pelo caminho, nem um marinheiro, nem um vigilante, nem uma mulher da noite. Nem mesmo um gato assustado, ou um bando de ratos. Apenas as sombras o cercavam, cada vez com um novo desenho, por vezes uma mariposa gigante, por vezes uma árvore, por vezes o vulto do seu pai. Lia, um por um, os nomes de todos os navios ancorados. Um navio de casco negro como se emerso de um livro juvenil estava de fato a esperá-lo no final do cais. Reconheceu o barco: era o mesmo que levara o outro naquela viagem, anos antes.

A escada estava estendida para que ele subisse. Emocionado e tremendo um pouco, mas decidido, venceu devagar os degraus e saltou para o convés. Olhou em volta, desconfiado. Não parecia ter ninguém ali. Mas acabou por percebeu um vulto atrás do timão, na cabine de comando. Era o capitão, reconheceu logo pela barba e pelo boné. Tentou encontrar uma porta que o levasse até ele. Em vão. Não havia portas. Então assobiou. O capitão virou-se para ele muito devagar, começou a olhá-lo longa e detidamente, mas não lhe enviou gesto algum. Apenas levou à boca um assobio de marinheiro.  Viu que o capitão assobiava com força uma, duas, três vezes. Viu que alguns marinheiros surgiram apressados e retiraram a escada. Viu que o navio ligava os motores. Viu que não conseguiria sair do navio. Viu que não conseguiria acordar. Com horror, percebeu que ele é que teria de ir ao encontro do outro, onde esse outro estivesse.


* Este conto é parte do livro Arboredo. Você pode baixá-lo inteiro em PDF. Clique aqui

           

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