Você só conhece uma cidade – ela dizia – se permanecer nela seis horas
Ou seis meses.
Jamais a conhecerá se permanecer seis semanas.
Eu levava em conta essa opinião.
Afinal, tratava-se de Buenos Aires.
Onde as gárgulas nos acompanham com os olhos
Do telhado dos velhos edifícios
Sulcados pela chuva.
E de quando em quando uma delas salta à nossa frente
Para filar um Parisienne.
Eu dizia para a minha guia, rindo
Enquanto estendia
O maço para a gárgula: “Estou aqui há cinco semanas.
Vou então perder o prazo de validade?”
Ela sorria.
“Sim, você vai. Por isso terá de completar seis meses”.
Ela era muito amiga de uma gárgula
Em forma de leoa alada
Clássica
Que zelava por uma livraria.
E que estava sempre com folhas de plátano grudadas nas suas asas.
A gárgula não podia vê-la passar
Que descia correndo pelo encanamento e lhe pedia para comprar vinho para ela.
“Esse bichinho é meio alcoólatra”,
Ela comentava depois comigo. “Trabalhava antes numa adega”.
Ela sempre estava de azul entre os prédios beges e cinzas
De Buenos Aires.
Contava umas histórias sobre a repressão
Nebulosas e tristes.
Mas quando íamos à Boca
Aos portões amarelos
Ela se vestia sempre de cinza.
Nem precisava me explicar por quê.
Ela me perguntava se eu sabia
Que Buenos Aires
Fora construída sobre uma mina de ferro.
Daí o tango
Os repuxos na alma
Os estragos na bússola
E os estranhos desenhos que a umidade desenhava nas paredes.
Eu caminhava com ela nos escondendo da chuva
Sob o olhar faminto das gárgulas.
E ia me deixando ficar
Imperceptivelmente
Implacavelmente.
Bebendo vinho e fumando cigarros negros
Fazendo também amizade com as gárgulas
Enquanto a bússola girava como louca.
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