Ela tinha um mapa-múndi aos pés da cama
E estava na cara que um dia iria embora.
Era mais ou menos assim: não havia pão, mas havia
jazz
Pilhas de discos de jazz, mas também bossa-nova
Blues, e música indonésia
Tristíssima
Que ela ouvia de manhãzinha
Enquanto tomava o banho.
O apartamento tinha uma varanda com um antúrio
E peixes desenhados na parede.
Eu sabia que ela iria embora.
Quando a conheci havia um campanário na minha cabeça
E eu recendia a corvos de vôo curto
Que pousaram suavemente no seu antebraço.
“Não se iluda”, ela me disse. “Vê aquela manequim na
vitrine?
Sou eu, mas não é a mesma coisa”.
Foi o amor da faca rondando o aguaceiro
E naquela tarde
Profundamente respiratória
Percorremos as ruas por entre os frágeis arabescos
Deixados pelos transeuntes
Arrancando as cicatrizes que a noite costurava no
dia
E com elas construímos vasos sangüíneos
Que nos levaram até o coração de nós mesmos.
“Moro ali”, ela me disse. “Tenho
Tantos discos que já não sei escolher”.
Cada dia ela pregava o alfinete num ponto do
mapa-múndi
Estava na cara que ela iria embora.
Mas a dor era compensada
Quando passeávamos no bairro das alfaiatarias
E quando no final da noite
Parávamos para beber vinho tinto gelado
Na adega com uma lágrima na porta.
A dor era sempre compensada
Quando víamos uma freira
A despejar óleo fervente sobre o formigueiro
E as árvores se descabelarem
Sob a chuva enlouquecida pelo vento.
Era triste saber que os seus cartões postais
Às vezes sangravam dentro do guarda-roupa.
Estava na cara que ela iria embora.
Mas tínhamos uma lei, a de não nos queixarmos nunca
Nem quando a espantosa solidão da cidade
Com seus uivos e maledicências
Enchia-nos a cabeça de apreensões e requerimentos
Nem quando um navio em chamas
Insistia em subir pela sua mão
E um enfermeiro furava os olhos da noite
Com um ramo envenenado, fazendo-a encolher-se de
dor.
Pois sempre valia a pena quando fazíamos o amor
saltar à nossa frente
Palhaço de água
Para que ele nos envolvesse com seus pássaros
E suas acrobacias.
Sempre valia a pena
Quando nos deixávamos rolar sob uma escura lona de
estrelas
Até nos destilarmos em suor
Até pedirmos o perdão que se pede em horas assim
Intimamente noturnas
E cheirando a paz e sêmen
Quando todo o riso é solene e propiciatório
E o grande relógio da cidade torna-se o escravo
inútil de si mesmo.
Sempre valia a pena quando íamos para a varanda
Sentir o vento talhar nossos rostos.
Mas ela tinha um mapa-múndi aos pés da cama
E estava na cara que um dia iria embora.
* Este poema é parte de O Mapa-múndi aos pés da cama. Você pode baixar o livro inteiro em PDF. Clique aqui
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