A melhor madeira para usar na construção de barcos

         “A madeira tem de ser de boa qualidade, senão deteriora, e o barco um dia afunda”, o meu tio me diz, enquanto beberica a cachaça diretamente da garrafa, adernando para trás e para frente na cadeira de balanço que faz tanto tempo mantém no alpendre de sua chácara, e não percebe já estar meio apodrecida. Ele olha comovido para o enorme, imenso terreno, onde acaba de plantar dezenas de mudas de cedros-do-líbano, de modo, segundo explicou, a aproveitar futuramente a madeira para construir uma arca. “A nova Arca de Noé”, suspira, sem olhar para mim. “Para me salvar, assim como a todos os animaizinhos de Deus”.

Eu só consigo rir da ideia dele. Mas disfarçadamente, é claro. Meu tio é excêntrico e bonachão, mas jamais gostou de ser ridicularizado. E a ideia dele não é apenas ridícula – é louca. Se tanto, porque ele tem mais de 60 anos, e cedros-do-líbano, toda criança sabe, demoram décadas para crescer. Vai morrer bem antes disso, talvez nem veja os cedros florescerem.

Mas ele parece adivinhar meus pensamentos.

“Não, não vou morrer antes que eles cresçam. Ninguém morre antes de cumprir sua missão”, ele me diz, continuando a olhar tranquilo e satisfeito para a plantação de cedros.

Meu tio está louco, é evidente. Toda a família sabe disso. Mas agora é tarde para contrariá-lo, e muito mais para eventualmente interná-lo. Pois a “loucura dos cedros” – como a família batizou a nova aventura dele – parecia ser antes um sintoma de cura, do que de doença. Até ele tomar essa decisão, não usava o terreno da bonita chácara que herdara dos pais para plantar praticamente nada. O terreno não passava de um matagal enfeitado por algumas árvores velhas e com um pé de couve aqui e ali. 

Ademais, é uma loucura que pode, de qualquer forma, se mostrar lucrativa para os nossos descendentes. Cedros-do-líbano podem ser usados em muitas outras coisas além da construção de barcos, como já ensinavam os fenícios, cujos magníficos navios eram feitos com a madeira dessa árvore.

Eles nos mostraram que a madeira do cedro, homogênea e aromática, pode hoje ser ótima para a construção de bangalôs e de bugigangas diversas. E o meu tio mesmo me contou que os egípcios também utilizavam a resina dos cedros na arte da mumificação, que um dia poderá voltar a ser uma prática habitual entre os nossos milionários e potentados – bem, por que não? Do jeito que o mundo anda...

Pergunto ao meu tio como ele fará para reunir exemplares de todas as espécies de animais que existem no planeta. O catálogo é muito maior do que na época de Noé (aliás, quantas espécies não teriam sido deixadas para trás?). Ele apenas sacode os ombros como resposta. E dá uma risadinha: “Muito mais difícil será arrumar uma mulher para vir comigo”. Rio também. Digo que ele é bem apessoado, bom de conversa e, afinal, tem dinheiro - e que não será tão difícil assim.

“Vai ser, vai ser”, ele suspira. “Pelas mesmas razões que os conterrâneos de Noé não quiseram acompanhá-lo. Não foi porque não acreditassem na chegada do Dilúvio. Mas porque preferiam morrer afogados a sobreviver num barco apertado ao lado de girafas, cabritos e aranhas e a de um cara chato como o Noé”.

Dá outro longo suspiro enquanto continua a olhar para a plantação de cedros.

“Talvez estivessem certos”.


* Este conto é parte do livro Arboredo. Você pode baixá-lo inteiro em PDF. Clique aqui

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