In memoriam

Perguntaram a Bertrand Russell
Do que mais ele sentia falta
Poucos dias antes
De o filósofo completar 100 anos

O velho suspirou
Com o olhar perdido na sombra da janela:
“De contemporâneos...”

Sim, há ainda jasmins nas avenidas
Bules de café
Fervendo nos fogões

E um deus a nos proteger da areia e da neblina
E dos antílopes que vêm de longe pastejar a solidão

Somos gratos por ter contemporâneos
Somos gratos por ter jovens e velhos e crianças e animais
Acima das nossas cabeças e abaixo dos nossos pés
Do lado da nossa cama

Dentro do álbum que não abrimos nunca
Na agenda de endereços onde há sempre alguém que já morreu
Ou nos abandonou

Sim, certamente eu não devia estar aqui
Contemplando este mar como se deste ato, tão simples, resultasse uma viagem

Que me levasse para o outro continente
Para a minha terra antípoda
Onde você talvez tenha vivido e sonhado desde sempre

Lembra?
Dividimos o sonho como quem divide um pão e um castiçal

E quebramos um a um os vitrais entre essa terra ressecada
E a outra lá, apenas intuída, e tão prenhe de umidade

Sim, caro Bertrand, o esquecimento é um homem de 100 anos
Festejando pelas ruas onde já não pisam seus contemporâneos

Enquanto o jasmim afoga a noite
Em golfadas de perfume, na espera que amanheça

* Este poema faz parte do livro Os campos de caça do senhor. Baixe o livro completo aqui.

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