Dia

O sol
bate
na espiga
de milho

Veja
o amarelo
a debater-se
na sombra

* Este poema é parte de O Mapa-múndi aos pés da cama. Você pode baixar o livro inteiro em PDF. Clique aqui

Bem-vinda

Como a mulher que dança na beira do cais
Sem se importar
Com a indiferença do transatlântico mais obeso que uma nódoa

Como o mendigo que acha uma dúvida
Na lata de lixo
E decide usá-la para engraxar o sapato

Como a multidão de insetos coloridos
Ressuscitando as lâmpadas
Que a minha covardia queimou

Como os pardais que pousam nas notas apagadas
De uma partitura
Tecendo com elas o manto da manhã

Como os peixes que nadam sob as nuvens
Deixando-se pegar
Com escumadeiras de 1,99

Como os rostos em que os traços da velhice
Vão sendo desenhados
Pela charrua sabida e paciente da garoa

Como a alegria dos operários
Ao fim da greve vitoriosa
Com suas cantorias de paz e de tão manso rancor

Chegas finalmente para perfumar o meu dia
Com o sal das algas que leva em teus cabelos

De tua boca as palavras soam plácidas
Como de uma árvore velha olhando tudo desde o fim da paisagem

As sombras que se autodevoram de fome
No lado escuro da rua

Correm para se alimentar da luz
Que emana dos teus olhos tão liquidamente calmos

És linda e generosa
Como uma melhor amiga

Uma garça que com seu pé
Impede a água do lago de vazar para o bueiro

E ainda me incandesce
Com a água-viva que repousa
Serena

No lado esquerdo
Dos teus seios

De sereia

As aves migratórias


Nos aprisionaram no celofane de um dia
que não acaba mais

Um farol de locomotiva ilumina os campos
onde cultivamos a falta de esperança

Passeamos sôfregos pelos andaimes
de uma fábrica em demolição

Onde as aves migratórias constroem seus ninhos
com o ranço das ameixas

Que marinheiro nos oferecerá o sonho
substancioso como um prato do dia?

Enquanto isso
esperamos

Como quem empilha barris de azeitonas
num cemitério de azulejos

Com o desespero dos animais
que não foram escolhidos para a arca

* Este poema é parte de O Mapa-múndi aos pés da cama. Você pode baixar o livro inteiro em PDF. Clique aqui

In memoriam

Perguntaram a Bertrand Russell
Do que mais ele sentia falta
Poucos dias antes
De o filósofo completar 100 anos

O velho suspirou
Com o olhar perdido na sombra da janela:
“De contemporâneos...”

Sim, há ainda jasmins nas avenidas
Bules de café
Fervendo nos fogões

E um deus a nos proteger da areia e da neblina
E dos antílopes que vêm de longe pastejar a solidão

Somos gratos por ter contemporâneos
Somos gratos por ter jovens e velhos e crianças e animais
Acima das nossas cabeças e abaixo dos nossos pés
Do lado da nossa cama

Dentro do álbum que não abrimos nunca
Na agenda de endereços onde há sempre alguém que já morreu
Ou nos abandonou

Sim, certamente eu não devia estar aqui
Contemplando este mar como se deste ato, tão simples, resultasse uma viagem

Que me levasse para o outro continente
Para a minha terra antípoda
Onde você talvez tenha vivido e sonhado desde sempre

Lembra?
Dividimos o sonho como quem divide um pão e um castiçal

E quebramos um a um os vitrais entre essa terra ressecada
E a outra lá, apenas intuída, e tão prenhe de umidade

Sim, caro Bertrand, o esquecimento é um homem de 100 anos
Festejando pelas ruas onde já não pisam seus contemporâneos

Enquanto o jasmim afoga a noite
Em golfadas de perfume, na espera que amanheça

* Este poema faz parte do livro Os campos de caça do senhor. Baixe o livro completo aqui.

A melhor madeira para usar na construção de barcos

         “A madeira tem de ser de boa qualidade, senão deteriora, e o barco um dia afunda”, o meu tio me diz, enquanto beberica a cachaça diretamente da garrafa, adernando para trás e para frente na cadeira de balanço que faz tanto tempo mantém no alpendre de sua chácara, e não percebe já estar meio apodrecida. Ele olha comovido para o enorme, imenso terreno, onde acaba de plantar dezenas de mudas de cedros-do-líbano, de modo, segundo explicou, a aproveitar futuramente a madeira para construir uma arca. “A nova Arca de Noé”, suspira, sem olhar para mim. “Para me salvar, assim como a todos os animaizinhos de Deus”.

Eu só consigo rir da ideia dele. Mas disfarçadamente, é claro. Meu tio é excêntrico e bonachão, mas jamais gostou de ser ridicularizado. E a ideia dele não é apenas ridícula – é louca. Se tanto, porque ele tem mais de 60 anos, e cedros-do-líbano, toda criança sabe, demoram décadas para crescer. Vai morrer bem antes disso, talvez nem veja os cedros florescerem.

Mas ele parece adivinhar meus pensamentos.

“Não, não vou morrer antes que eles cresçam. Ninguém morre antes de cumprir sua missão”, ele me diz, continuando a olhar tranquilo e satisfeito para a plantação de cedros.

Meu tio está louco, é evidente. Toda a família sabe disso. Mas agora é tarde para contrariá-lo, e muito mais para eventualmente interná-lo. Pois a “loucura dos cedros” – como a família batizou a nova aventura dele – parecia ser antes um sintoma de cura, do que de doença. Até ele tomar essa decisão, não usava o terreno da bonita chácara que herdara dos pais para plantar praticamente nada. O terreno não passava de um matagal enfeitado por algumas árvores velhas e com um pé de couve aqui e ali. 

Ademais, é uma loucura que pode, de qualquer forma, se mostrar lucrativa para os nossos descendentes. Cedros-do-líbano podem ser usados em muitas outras coisas além da construção de barcos, como já ensinavam os fenícios, cujos magníficos navios eram feitos com a madeira dessa árvore.

Eles nos mostraram que a madeira do cedro, homogênea e aromática, pode hoje ser ótima para a construção de bangalôs e de bugigangas diversas. E o meu tio mesmo me contou que os egípcios também utilizavam a resina dos cedros na arte da mumificação, que um dia poderá voltar a ser uma prática habitual entre os nossos milionários e potentados – bem, por que não? Do jeito que o mundo anda...

Pergunto ao meu tio como ele fará para reunir exemplares de todas as espécies de animais que existem no planeta. O catálogo é muito maior do que na época de Noé (aliás, quantas espécies não teriam sido deixadas para trás?). Ele apenas sacode os ombros como resposta. E dá uma risadinha: “Muito mais difícil será arrumar uma mulher para vir comigo”. Rio também. Digo que ele é bem apessoado, bom de conversa e, afinal, tem dinheiro - e que não será tão difícil assim.

“Vai ser, vai ser”, ele suspira. “Pelas mesmas razões que os conterrâneos de Noé não quiseram acompanhá-lo. Não foi porque não acreditassem na chegada do Dilúvio. Mas porque preferiam morrer afogados a sobreviver num barco apertado ao lado de girafas, cabritos e aranhas e a de um cara chato como o Noé”.

Dá outro longo suspiro enquanto continua a olhar para a plantação de cedros.

“Talvez estivessem certos”.


* Este conto é parte do livro Arboredo. Você pode baixá-lo inteiro em PDF. Clique aqui

O mapa-múndi aos pés da cama


Ela tinha um mapa-múndi aos pés da cama
E estava na cara que um dia iria embora.
Era mais ou menos assim: não havia pão, mas havia jazz
Pilhas de discos de jazz, mas também bossa-nova
Blues, e música indonésia
Tristíssima
Que ela ouvia de manhãzinha
Enquanto tomava o banho.
O apartamento tinha uma varanda com um antúrio
E peixes desenhados na parede.
Eu sabia que ela iria embora.

Quando a conheci havia um campanário na minha cabeça
E eu recendia a corvos de vôo curto
Que pousaram suavemente no seu antebraço.
“Não se iluda”, ela me disse. “Vê aquela manequim na vitrine?
Sou eu, mas não é a mesma coisa”.
Foi o amor da faca rondando o aguaceiro
E naquela tarde
Profundamente respiratória
Percorremos as ruas por entre os frágeis arabescos
Deixados pelos transeuntes
Arrancando as cicatrizes que a noite costurava no dia
E com elas construímos vasos sangüíneos
Que nos levaram até o coração de nós mesmos.
“Moro ali”, ela me disse. “Tenho
Tantos discos que já não sei escolher”.

Cada dia ela pregava o alfinete num ponto do mapa-múndi
Estava na cara que ela iria embora.
Mas a dor era compensada
Quando passeávamos no bairro das alfaiatarias
E quando no final da noite
Parávamos para beber vinho tinto gelado
Na adega com uma lágrima na porta.
A dor era sempre compensada
Quando víamos uma freira
A despejar óleo fervente sobre o formigueiro
E as árvores se descabelarem
Sob a chuva enlouquecida pelo vento.

Era triste saber que os seus cartões postais
Às vezes sangravam dentro do guarda-roupa.
Estava na cara que ela iria embora.

Mas tínhamos uma lei, a de não nos queixarmos nunca
Nem quando a espantosa solidão da cidade
Com seus uivos e maledicências
Enchia-nos a cabeça de apreensões e requerimentos
Nem quando um navio em chamas
Insistia em subir pela sua mão
E um enfermeiro furava os olhos da noite
Com um ramo envenenado, fazendo-a encolher-se de dor.

Pois sempre valia a pena quando fazíamos o amor saltar à nossa frente
Palhaço de água
Para que ele nos envolvesse com seus pássaros
E suas acrobacias.
Sempre valia a pena
Quando nos deixávamos rolar sob uma escura lona de estrelas
Até nos destilarmos em suor
Até pedirmos o perdão que se pede em horas assim
Intimamente noturnas
E cheirando a paz e sêmen
Quando todo o riso é solene e propiciatório
E o grande relógio da cidade torna-se o escravo inútil de si mesmo.
Sempre valia a pena quando íamos para a varanda
Sentir o vento talhar nossos rostos.

Mas ela tinha um mapa-múndi aos pés da cama
E estava na cara que um dia iria embora.

* Este poema é parte de O Mapa-múndi aos pés da cama. Você pode baixar o livro inteiro em PDF. Clique aqui

A garçonete de olhos de espantalho


 A garçonete de olhos de espantalho estava demorando demais para atendê-lo. Ele estava com fome, e só tinha aquela garçonete em serviço. Como ele era também o único cliente àquela hora, a demora parecia-lhe injustificável. A moça estava mais interessada em pregar um papel qualquer num mural que existia perto do caixa.
“Moça, por favor”, ele implorou, pela quarta ou quinta vez, mas agora com uma voz alta e já um pouco eriçada de irritação.
A garçonete, enfim, olhou para ele, e ele pôde confirmar que os olhos dela eram, de fato, bastante esbugalhados. O cabelo era também um pouco desgrenhado. Mas não dava para dizer que ela era feia. Pelo contrário: lembrou-lhe antes uma daquelas moças do interior que participam de concurso de miss, perdem, e depois relaxam. O uniforme ficava bem nela, realçando as curvas e os seios.
“Só um minutinho”, ela respondeu, lançando-lhe um sorriso protocolar. “Já vou atender”.
Ele suspirou. O jeito era ter paciência. A gente não pode exigir muito nessas cidades pequenas. Tamborilando a mesa, olhou através da grande janela envidraçada para ver se a chuva estava com jeito de parar. Não estava. Agora, chovia ainda mais do que antes. Como faria para voltar ao hotel? Bem, resolveria isto depois. O importante agora era comer. Estava morrendo de fome.
Estava também com um pouco de frio. Como toda lanchonete, aquela tinha sido forrada do piso ao teto de lajotas e azulejos, um ambiente gélido e inóspito que ele mais temia do que detestava. Não sabia por que, achava que eram iguais ao quarto que um dia ocuparia no Inferno. “De quente, o Inferno só tem as cores”, tentou uma vez explicar para um amigo. Evitava as lanchonetes também por causa das mesas de fórmica: “Muito feias”. Gostava mesmo era dos bares acarpetados e com mesas de madeira de lei, e se possível com lareira.
Mas agora estava numa lanchonete numa cidade do interior numa noite de chuva morrendo de fome, e quase implorando para a garçonete de olhos esbugalhados parar de pregar aquele diabo de aviso no mural e vir servi-lo. Encolhido de frio, ele olhou de novo para a chuva. Que graça tem a gente ficar olhando pra chuva? É sempre a mesma, se a gente pensar bem, só muda a intensidade. Pensou que no hotel devia ter lençóis limpos no quarto, uma cama quentinha, talvez revistas velhas no armário. Valia a pena caminhar até lá depois do jantar com chuva e tudo, chegar todo molhado, tomar um banho quente e cair na cama.
            Mas antes precisava comer. E nada daquela garçonete de olhos de espantalho dignar-se a atendê-lo. Perdeu a paciência e foi ter com ela junto do mural. Ela tinha terminado o serviço e estava com os braços em posição de açucareiro, admirando o que parecia ser uma notícia de jornal. Curioso, aproximou-se para ler o que o recorte dizia. A surpresa de ver a sua fotografia no recorte, assassinado num quarto de hotel, foi-lhe tão surpreendente quanto a data da notícia, a noite do dia anterior. Então estava certo, o Inferno era mesmo uma lanchonete forrada de azulejos.

* Este conto é parte do livro Arboredo. Você pode baixá-lo inteiro em PDF. Clique aqui